Mateus Bruxel / Agencia RBS
Aos 86 anos, o sócio João Baptista Longo ainda se dedica ao negócio da família em tempo integral
O letreiro da fachada oferta ares de outros tempos: fazendas, secos, molhados, miudezas. Quem entra na Super Loja Longo confirma, de imediato, que um dos pontos de comércio mais longevos de Capão da Canoa, tem o direito de se gabar do prefixo que confere grandeza ao nome: são pelo menos 12 mil itens à venda. Na esquina das ruas Sepé e Pindorama, o estabelecimento com feições de antigamente, inaugurado há 66 anos, é um dos mais sólidos monumentos da memória afetiva de caponenses e veranistas. "Se não encontrar no Longo, não precisa mais procurar", dizem os clientes, perpetuando a fama do sortimento da casa. "Não achou? Vai no Longo!"




Surpreende descobrir que João Baptista Longo, 86 anos, ainda esteja atrás do balcão. Toca o negócio iniciado há um século pelo pai, um imigrante italiano da Calábria que chegou a Porto Alegre e depois investiu também na Litoral Norte. Sentado diante de uma escrivaninha ao fundo, cercado de prateleiras repletas de produtos, livros de memórias e fotos em preto e branco, João Baptista enumera os pioneirismos da loja inaugurada em 1949: a primeira bomba de gasolina da cidade, o primeiro posto de remédios, o primeiro posto de gás.



A variedade de artigos foi se multiplicando porque o município tinha poucas opções, e o objetivo era facilitar a vida da clientela. Hoje o Longo se concentra em tecidos, aviamentos, ferragem, bazar, brinquedos, cama, mesa e banho. A vista não dá conta de tudo, há mercadorias pendendo do teto, um sem-fim de gavetinhas. No ano passado, com a implementação de um sistema de informática, João Baptista, ainda hoje responsável pela contabilidade do empreendimento, aprendeu o básico para operar um computador.

- Só sei mexer para cobrar - brinca ele, agoniado com a necessidade de pressionar várias teclas para concluir a transação de pregos, parafusos ou botões que custam centavos.


É incessante o entra e sai - às vésperas do Ano-Novo, foram 500 fregueses diários -, principalmente quando os dias chuvosos obrigam o povo a achar um passatempo longe do mar. Tem gente que vem só para olhar, investigar as estantes, puxar assunto, lembrar de um trecho da juventude longínqua vivida na praia. Quem chega sem qualquer intenção de gastar acaba encontrando um pote, mata-moscas, fatiador de batatas ou desentupidor que de repente se torna necessário. A fartura de trivialidades parece ter poder magnético - esta repórter não resistiu a uma saboneteira e a um prendedor de cabelo. É difícil um atendente ter de confessar que não dispõe de determinado produto. Calçadeiras de metal, por exemplo. João Baptista tem grande apreço por elas - mas das legítimas, infelizmente, nem sinal de fornecedor.

- Só encontro imitação - lamenta, mostrando uma haste de plástico de R$ 5 que conjuga calçadeira e coçador de costas, cada finalidade em uma ponta.



Outro dia apareceu alguém atrás de um bilboquê. Não havia, mas o vendedor apresentou outro brinquedo de fama remota, um pião, como contraproposta. E não é por ficar démodé que o artigo perde espaço nos estoques: até penico para adultos, a R$ 4, o Longo tem.

- Vende pouco, mas sempre tem alguém que precisa - comenta o dono.

João Baptista lembra dos que já se aventuraram em furtos naqueles corredores. Certa vez, o comerciante embarcou em um táxi para perseguir um ladrão de máscaras de Carnaval. Em outro episódio, descobriu que um sujeito andava surrupiando uísque estrangeiro. Habilidoso com as peças do setor de ferragem, o proprietário montou uma engenhoca para flagrar o malandro na investida seguinte: fez uma conexão elétrica e instalou, debaixo da cobiçada garrafa, uma chave que seria acionada quando o produto saísse da prateleira. Uma lâmpada, então, se acenderia nos fundos da loja, chamando a atenção de quem estivesse à espreita. Posicionou espelhos para ampliar o campo de visão. Pena que a arapuca não tenha evitado mais uma ação do gatuno.

- Faltou luz naquele dia - conta João Baptista, rindo.



Um dos maiores chamariscos do Longo está postado junto à entrada. Dondolino, um burrinho mecânico que se move para a frente e para trás, recepciona os visitantes há cerca de 40 anos. Hoje em dia o bicho anda meio "mal de saúde", brinca Maria Amélia, 46 anos, filha de João Baptista e sócia-diretora. Numa passada lenta, ele parece cansado, as engrenagens fazendo barulho a cada embalo. Às vezes, engasga com as fichas - R$ 1 por um minuto de deleite - ou tranca logo após o arranque, forçando o funcionário do caixa a interromper o atendimento à fila de compradores para acudi-lo. Em uma era de diversões digitais, a singeleza do animal ainda causa comoção na calçada: as crianças passam freando a caminhada, puxando a mão dos pais, insistindo por uma voltinha. Abrem o berreiro quando os apelos são ignorados.

- Quem não andou no Dondolino não veio a Capão - define Liz Siqueira, 42 anos, que se encanta ao observar a filha, Maria Julia, quatro anos, repetindo um hábito da infância da mãe. - Deus o livre se ele fica doente - diverte-se a professora ao recordar uma ocasião em que o burro parou de funcionar, consternando a menina.



Dondolino está tão entranhado no imaginário local que inspira até a invenção de lembranças. Tem veranista com idade superior ao tempo de existência do burro que garante ter montado ali quando pequeno. Maria Amélia percebe o equívoco, mas não se intromete na autoficção da freguesia, deixando os saudosos recontarem momentos que nunca existiram.

- Não mato fadinhas - diverte-se ela.

Há dois anos, João Baptista foi abordado por uma turista venezuelana interessada em levar Dondolino embora. O proprietário não quis nem ouvir a proposta. Exalando orgulho, ele anuncia:

- É o monumento mais fotografado de Capão. Esse burro ferve!

Encerrar as atividades não está nos planos da família. Ainda que a concorrência tenha aumentado muito, não há motivo para reclamar do faturamento. Maria Amélia afirma que a rotina de trabalho em três turnos é o que mantém o pai disposto, de cabeça boa. Volta e meia algum conhecido se surpreende com a presença de João Baptista na loja, dia e noite, sempre circulando e se certificando de que todos estão sendo atendidos, e questiona:

- Não vai te aposentar?

O idoso devolve de pronto:

- E vou fazer o quê?

Yara Salgado Barreto, 84 anos, veranista de Capão há quase oito décadas, frequenta o Longo "desde sempre". Aprecia o ambiente, sabe que vai encontrar o que procura, principalmente as calcinhas confortáveis de marca boa:

- Gosto de olhar para cá, a cada veraneio, e ver que as portas estão abertas. Tanta coisa fecha...

Os meses de alta temporada são intensos, e a loja funciona todos os dias, com o triplo de empregados. Mas nem no inverno João Baptista descansa nos finais de semana. Aos domingos, há expediente pela manhã. Depois do almoço e da sesta, um vazio se apresenta. 

- Se não tiver um futebolzinho, fico bem perdido.

Satisfeito, o dono faz as contas:

- Há 60 anos eu não sei o que é um domingo de folga.