Os planos de umtremligando Porto Alegre ao Litoral Norte nunca saíram do papel. Não passaram de sonhos de verão. O que nem todos sabem é que uma ferrovia já fez parte da conexão da região com a capital gaúcha. Em 1921, aproveitando o comércio nas lagoas, a empresa de Serviços de Transporte entre Palmares do Sul a Torres (STPT) ampliou o sistema ligando Osório a Palmares do Sul por via férrea, com a construção de uma linha de 53 quilômetros de extensão.
O escritor e historiador Rodrigo Trespach conta que o trecho era percorrido em quase três horas por locomotivas, carinhosamente chamadas de “trenzinhos”. Os vagões transportavam passageiros, mercadorias e gado. O STPT contava com cinco locomotivas. A número 200 era chamada de “alemoa” devido a sua procedência. As outras quatro foram construídas na Inglaterra e receberam numeração 201, 202, 203 e 204.
O ponto de partida era o porto de Osório, localizado às margens da Lagoa do Marcelino. A linha passava pelo centro da cidade, na Estação Urbana, e se dirigia até Palmares do Sul, de onde a produção litorânea e passageiros seguiam nas embarcações pela Lagoa dos Patos até chegar ao Guaíba, em Porto Alegre. Além do porto do Marcelino e do centro de Osório, foram construídas estações em Passinhos, Rancho Velho e Rio Palmares.
O complexo de navegação e ferrovia foi desativado em dezembro de 1960. O STPT foi desativado e o porto de Osório desmantelado. Pouco sobrou daquela época, lembra Trespach, mas uma das locomotivas, a 203, construída em 1918 pela Hunslet Engine Company, foi salva da sucata pelo empresário Lauro Febernatti, que a deixou em exibição durante anos no parque Pampas Safari, em Gravataí. Em 2018, a família Febernatti doou a locomotiva à prefeitura de Osório, que a restaurou. Ela está atualmente em frente ao Museu da Via Férrea, que funciona numa réplica da Estação Urbana, construída em 2008.
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Com nome em homenagem ao primeiro tropeiro a desbravar o Sul do Brasil, o farol Cristóvão Pereira resiste à distância, ao tempo e até ao vandalismo. E desafia os atuais visitantes que, assim como o antigo comerciante do século 18, precisam se aventurar pelas estradas de terra e de areia para chegar à torre erguida às margens da Lagoa dos Patos, em Mostardas, no Litoral Médio.
Se, antigamente, os tropeiros faziam o trajeto a cavalo pela região, agora são os veículos com tração 4x4 que costumam dominar a área. Basta sair do asfalto da RSC-101 e ingressar na estrada vicinal, distante 13 quilômetros do Centro de Mostardas, para entender o motivo. Pelo caminho, apesar de trechos mais enlameados, o cenário do Rincão de Cristóvão Pereira (nome da localidade) é de encher os olhos: campos verdejantes, lagoas e aves de diferentes espécies. Nada muito diferente das paisagens que fizeram o português se apaixonar pelo lugar.
E apesar de a região ter começado a ser habitada ainda no século 18, até hoje conta com casas distantes, na maioria fazendas e chácaras, permanecendo com uma paisagem bucólica só cortada pelo vaivém dos veículos. Quatro placas ao longo dos 31 quilômetros que separam a rodovia do farol indicam o caminho mais simples até a construção histórica. Depois da estrada de terra vermelha, os últimos cinco quilômetros são feitos pelas margens da Lagoa dos Patos.
Se o passeio for realizado no verão, vale parar para um banho nas águas límpidas e mornas antes ou depois de ir ao farol, já que na área dele a profundidade pode mudar conforme a época do ano, não sendo indicado o banho.
Na chegada ao Cristóvão Pereira, a obra impõe-se em meio à natureza. Durante o inverno, a península onde está o farol costuma ficar isolada pela água, formando uma ilhota. No verão, com a seca, é possível chegar de carro até os pés do prédio. Em fevereiro deste ano, GZH esteve no local. Por duas horas, o único contato com alguma pessoa foi por meio do radiotransmissor do repórter fotográfico Lauro Alves, ao conversar rapidamente com uma embarcação que passeava ao longo da lagoa.
Quando a equipe se preparava para retornar até a rodovia, ouviu o som de um carro se aproximando. Por vezes devagar e, em outras, aumentando a velocidade sobre a areia, tentava cruzar a trilha. Era o Corsa da família do auxiliar de serviços gerais Diones Santos da Silva, 39 anos, de Mostardas. Ao lado do filho, Leonardo Jesus Silva Santos da Silva, 16, da esposa, Lucimara da Rosa, 49, e do avô de Leonardo, Cláudio Miguel Alves da Silva, 66, Diones não se importou com o carro sem tração para apresentar o farol histórico ao adolescente.
— É a terceira vez que venho visitá-lo, mas a primeira com o meu filho. Nos finais de semana, costumamos percorrer os faróis e pontos mais importantes do litoral. É uma forma de manter viva a história da nossa região — contou Diones, que garantiu estar acostumado com as estradas exigentes da área.
— Antigamente, passava de barco por aqui quando íamos pescar. É o farol mais açoriano de Mostardas. Tem uma arquitetura muito bonita. Por isso, merecia ser melhor cuidado — acrescentou Cláudio Miguel.
Ao se despedir da reportagem, a família revelou que seguiria ainda até o farol Capão da Marca, em Tavares, distante 30 quilômetros pela beira da lagoa.
Importante para a navegação
Inaugurado em alvenaria em 8 de janeiro de 1861, um século depois da morte de Cristóvão Pereira de Abreu, o prédio tem 28 metros de altura. Entre 1858 e 1861, funcionou numa estrutura construída em madeira. Por um período, chegou a ser considerado o mais antigo farol do Estado. Porém, a historiadora Marisa Guedes, moradora de Mostardas e pesquisadora da região há mais de 35 anos, explica que muitos estudiosos não contavam os faróis provisórios. Anos antes, em 1849, por meio de uma lei, o vizinho Capão da Marca, em Tavares, iniciou os trabalhos numa torre de madeira. Sendo assim, passou a ser considerado o primeiro a ser erguido no Rio Grande do Sul.
Apesar da mudança da data histórica, a obra de Mostardas segue com relevância, pois faz parte do balizamento entre a entrada do canal da barra de Rio Grande até o porto de Porto Alegre, considerada uma das principais rotas para a economia da Região Sul do Brasil.
— Mesmo com o avanço da tecnologia na área da navegação ao longo dos anos, os faróis em geral ainda são de suma importância para a segurança da navegação, tendo em vista que, diante da falha de algum equipamento eletrônico a bordo das embarcações, o farol servirá para orientar tais embarcações, servindo também para embarcações menores desprovidas de tais tecnologias — explica o capitão-tenente Edilson José do Carmo, encarregado da Divisão de Sinalização Náutica da Marinha do Brasil.
Ataque dos vândalos
Em plena atividade, o Cristóvão Pereira continua funcionando por meio de painéis fotovoltaicos. Sem registros oficiais, a Marinha do Brasil apenas informa que o farol já foi “guarnecido” por faroleiros e suas famílias, mas não há registro histórico de quando deixou de ser ocupado. Em fotos do acervo do site Popa, feitas em 1950, o prédio está diferente do atual. Ainda havia figueiras no entorno dele e a casa do faroleiro.
Segundo Geraldo Knippling (falecido em 2000), que costumava navegar pela lagoa e escreveu o livro O Guaíba e a Lagoa dos Patos, o farol passou por uma reforma em 1992, quando a porta e as janelas foram fechadas com tijolo e cimento. Em 2004, um muro de pedras foi erguido no entorno.
Sem acesso interno para visitas, o prédio não deveria ter qualquer entrada. Mas os vândalos conseguiram abrir um buraco numa das paredes, por onde ingressam no térreo do prédio. Pela fenda, é possível ver escritos da década de 1980 nas paredes, que podem ter sido feitos antes do fechamento total da construção. O acesso aos demais andares da estrutura também está cimentado.
O encarregado da Divisão de Sinalização Náutica da Marinha do Brasil salienta que, apesar de ser alvo constante de ações de vândalos, o farol recebe inspeções periódicas a cada três meses, quando a Marinha recebe informações ou denúncias de vandalismo e também sempre que um navio da Marinha do Brasil passa ao largo durante ida a Porto Alegre.
sexta-feira, 11 de março de 2022
Fiscalização investiga construções consideradas irregulares em praias do Litoral Norte
Especialistas em meio ambiente destacam que a preservação da costa é prejudicada com isso
Local preferido do verão nas praias do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, a região da beira-mar é espaço muito valorizado financeiramente. Afinal, quem não gostaria de uma casa ou de um apartamento pertinho dali, ou ainda curtir um restaurante perto de visual tão agradável? O avanço de construções muito próximas ao mar tem feito com que órgãos públicos aprimorem legislações e fiscalizações para preservar o ambiente costeiro, o que inclui as chamadas dunas frontais, aquelas que ficam antes da beira da praia.
Entre os órgãos que atuam na regularização de construções próximas à faixa de areia, está o Ministério Público Federal (MPF). Responsável também por temas relacionados ao meio ambiente no Litoral Norte, a Procuradoria da República de Capão da Canoa move 763 ações judiciais (696 criminais relativas ao meio ambiente e 67 cíveis de tutela coletiva ambiental). Não há levantamento de quantas são sobre construções irregulares em faixa de praia e dunas, mas boa parte trata do assunto, conforme o órgão.
Ao longo do mês de fevereiro, a equipe de GZH percorreu mais de 150 quilômetros pela costa gaúcha, entre Balneário Pinhal e Torres, para conferir obras que avançaram em direção ao mar mais do que deveriam, de acordo com o MPF e órgãos ambientais. São imóveis que já foram demolidos, que possuem sentença para demolição e há recursos a tribunais ou que ainda estão em fase inicial de discussão judicial.
Procurador da República em Capão da Canoa, André Raupp destaca que, além das ações judiciais, há tramitando no órgão inquéritos civis públicos e procedimentos de investigações criminais, além de inquéritos policiais na Polícia Federal acerca de denúncias referentes a "construções irregulares em áreas ambientalmente relevantes no cordão de dunas frontais ou próximo dele".
— A legislação ambiental protege áreas de restinga. E existe a necessidade, sempre quando alguém vai construir nessas áreas que ainda têm uma vegetação nativa ou que está próxima, que procure os órgãos ambientais — alerta o procurador.
MPF considera que quiosques da Praia Grande, em Torres, avançaram suas estruturas irregularmente em direção à faixa de areia
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Advogado que representa donos de quiosques em Torres diz que empreendimentos possuem características próprias que afastariam as pretensões de remoção ou demolição defendidas pelo MPF
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Local onde ficava o Baronda, demolido no fim de 2010 depois de anos de discussão judicial, é usado também para eventos e locação de patinetes
Mateus Bruxel / Agencia RBS
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Conforme Raupp, até o início da década de 1970, donos de terrenos no Litoral Norte dividiam a propriedade e vendiam lotes. Naquela época, não era exigido estudo ambiental para isso. Por este motivo, áreas em locais de preservação permanente, que não permitem algumas construções, têm inclusive matrículas dos imóveis.
— Em determinados locais, (a matrícula) não é suficiente para autorizar a construção. Precisa verificar a importância ambiental do terreno — acrescenta o membro do MPF.
Outro lugar bastante conhecido em que o processo judicial se arrasta há anos é o antigo Bali Hai, que atualmente se chama 20barra9. Localizado na praia de Atlântida, em Xangri-lá, o restaurante é um dos locais mais badalados da região. Assim como o Baronda, foi construído em cima de dunas e acabou avançando na faixa de praia, conforme a sustentação do MPF. Depois da definição da competência da Justiça Federal para julgar o caso, agora a ação está na fase de perícias. GZH esteve no local e também entrou em contato com executivos da empresa, mas até a publicação desta reportagem, não obteve retorno aos questionamentos enviados.
Em Torres, há quiosques na beira da praia em locais considerados irregulares pela Justiça, principalmente na Praia Grande. Há sentenças para demolição de, pelo menos, quatro deles: Bicão, Chapéu de Palha, Mariskão e A Baiana. Tais decisões foram objeto de recursos - com as decisões finais de primeira instância, os réus recorreram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região e, enquanto não há o trânsito em julgado, tudo vai ficando como está. Além destes, há outros estabelecimentos na Praia Grande em discussão judicial.
Alguns proprietários não quiseram falar com GZH e outros indicaram Alexandre Quartiero, advogado da Associação Comercial do Calçadão da Praia Grande de Torres (ACCPGT), para responder. No entendimento de Quartiero, esses empreendimentos possuem características próprias que afastariam as pretensões de remoção ou demolição defendidas pelo MPF. Sustenta que estão em regiões densamente ocupadas, sobre o calçadão, e não sobre as dunas.
— Suas atividades utilizam todos os equipamentos e serviços de infraestrutura urbana, tais como abastecimento público de água potável, rede de sistema de coleta de esgoto, coletas de resíduos comuns e seletivos, rede de energia elétrica, além de destinar seus resíduos de óleos para empresas licenciadas — afirma Quartiero, ao acrescentar que "eles não geram passivo ambiental", que estão na região há mais de 30 anos e possuem todos os alvarás municipais.
Na praia de Magistério, em Balneário Pinhal, residências construídas em cima de dunas foram demolidas após decisões judiciais nos anos de 2020 e 2021. Nesta região, é possível perceber o crescimento da vegetação e o aumento do volume de areia, num indicativo de recuperação ambiental do local.
Izarel Catarina Hoffman da Silveira, 64 anos, possui um quiosque bem ao lado do local onde estavam estes imóveis, casas construídas há décadas.
— Fazia muitos anos que eles moravam ali (os proprietários da última residência demolida). Tanto é que eles envelheceram naquela casa, até morrerem — recorda a comerciante.
Por que não pode ter construção nestas áreas
Luiz Liberato Tabajara é oceanógrafo e pós-doutor em diagnóstico e manejo de praias e dunas. Lembra que o principal papel das dunas é a preservação da costa.
— De 2016 para cá, houve uma ressaca no mar que foi catastrófica para o perfil da praia. Deu um recuo de até dez metros de duna. O pior é que não se refez essa duna. Tivemos tempestades e vento muito fortes. Temos a subida do nível do mar lenta, gradual, mas acontecendo. E as dunas são essa segurança — explica o especialista.
Tabajara reforça que as faixas de praia e de dunas merecem um cuidado especial no que diz respeito ao meio ambiente.
— A duna é um ecossistema. Ela tem interação da areia que vem da praia pelo vento. E interage com uma vegetação específica que cresce junto com a areia e aumenta o volume da duna. Junto tem a fauna que se alimenta disso, como o tuco-tuco, a lagartixinha e o siri-fantasma — observa o especialista.
Conforme o oceanógrafo, na praia de Costa do Sol, em Cidreira, por exemplo, quase 70% da costa estão ocupados irregularmente. São imóveis construídos em dunas frontais.
— São ocupações de risco, por pessoas com alta vulnerabilidade social. O problema pra elas é o mar subir e invadir essas casas — alerta o especialista.
Sobre os quiosques que ficam na beira da praia, ele explica que são estruturas temporárias sustentadas por pilotis, justamente para quando o mar subir, a água passar por baixo e voltar.
— Uma ressaca mais forte pode destruir essas estruturas. Porque isso ali pertence ao mar — pondera.
Samanta da Costa Cristiano é bióloga e PHD em gerenciamento costeiro. Também é facilitadora do Projeto Orla, iniciativa que reúne União, Estados e municípios para promover ações de cuidados com a região próxima ao mar. Para ela, é fundamental um diálogo entre todos os envolvidos para encontrar uma solução e evitar a judicialização de questões tão importantes para o meio ambiente.
— Se não tem todo mundo de acordo, fica esse imbróglio. Eu trabalho com a conscientização do proprietário (de imóvel em área irregular) para que ele entenda o impacto na região e a importância da retirada do imóvel do local — conta Samanta.
Apesar de haver casos de imóveis em áreas de dunas e de praia, Samanta considera que o Rio Grande do Sul evoluiu em termos de cuidados com essas regiões.
— O Estado é exemplo nacional, por exemplo, no Plano de Manejo de Dunas e no Plano de Uso de Faixa de Praia (esse último sazonal) — relata Samanta, ao destacar que dificilmente há construções novas nessas áreas e sim as que foram feitas há muitos anos.
Arquiteta e urbanista do Departamento de Qualidade Ambiental da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Luciana Petry Anele relata que no início dos anos 2000 se verificou que era necessário um diagnóstico da região, já que estava havendo uma confusão na ocupação da faixa de praia. Em 2002, o diagnóstico detalhou a situação dos 10 municípios costeiros, com o registro de cada empreendimento:
— Foram catalogados 650 quiosques e 39 restaurantes de grande porte em 120 quilômetros de praia com diversos impactos ambientais, como construção sobre as dunas frontais, disposição inadequada de efluentes e degradação da paisagem natural.
O diagnóstico da época, segundo a arquiteta, demostrou uma tendência à urbanização da faixa de areia. Foi então que em 2004 os representantes dos municípios da região concordaram com um termo de compromisso firmado com a Fepam, o Mistério Público Federal e a Superintendência do Patrimônio da União (SPU). Ficaram definidos, entre outros, prazos para retirada desses quiosques e restaurantes na faixa de praia. A ideia era que até 2006 não existissem edificações permanentes no local. Luciana admite a importância econômica e social dos quiosques na faixa de praia, desde que respeitadas as legislações.
— As instalações são autorizadas a permanecer na praia no período de 90 dias, prorrogáveis por 90 — ressalta.
Segundo Luciana, os outros seis meses do ano servem para recuperação ambiental do impacto causado pelas instalações.