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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

 

A saudosa Capão da Canoa da minha juventude

 Foram tantas as manifestações de leitores após minha coluna de quarta-feira (3), que acabei estimulado a cavoucar um pouco mais nas memórias de meus veraneios na praia gaúcha

Ricardo Chaves
Ricardo Chaves / Arquivo Pessoal
Chalé da minha família em Capão da Canoa no final dos anos 1960

Na coluna da última quarta-feira (3), evoquei as temporadas de férias do passado, quando Capão era apenas um tranquilo balneário de Osório. Foram tantas as manifestações de leitores, que acabei estimulado a cavoucar um pouco mais nas memórias e nas imagens de antigamente. 

Algumas mensagens diziam que, ao ler o texto, veteranos veranistas foram transportadas de volta para aquele tempo remoto. Mais gratificante impossível. A Sônia disse que voltou, alegoricamente, à velha Capão. O Eduardo lembrou que, então, alugavam-se cavalos para passeios, mas os donos dos animais recomendavam que se evitasse levá-los até a Avenida Paraguassu, nas imediações da antiga caixa d’água, já que “a partir daí, eles ficavam incontroláveis e enveredavam para o lado da lagoa, onde viviam os proprietários e onde ficavam suas baias, e ninguém conseguia fazê-los voltar.”

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Como nem sempre os cavalos eram bem tratados, e alguns locatários inconsequentes abusavam dos animais em intensos galopes, essa prática, que era essencialmente bacana, teve de ser proibida para proteger os equinos. Essa informação me fez recordar que, naquela época, anos 1950 ou 1960, junto ao farol, havia uma oficina que consertava, e também alugava, bicicletas. Lembro que, certa vez, meu pai Hamilton alugou uma delas para uma visita a uma prima que estava na Praia Araçá. Eu, ainda muito pequeno, viajei sentado no porta-pacotes (que cadeirinha, que nada), e acabei enfiando um pé entre os raios da roda, o que provocou um ferimento que turvou a alegria do passeio, mas não chegou a inviabilizá-lo. Já bem maior, eu tinha, em Porto Alegre, minha própria bicicleta, aro 26. Não era comum, como agora, ver as bicis sendo transportadas em racks nos automóveis. 

Pode parecer absurdo, mas, todo ano, minha bike era despachada para o Litoral pela transportadora da Loja Longo, onde, feliz, eu ia resgatá-la. A Longo, tradicional casa de comércio instalada (até hoje) na praça central de Capão, era onde se encontrava de tudo: de tecidos a ferragens, de brinquedos a utensílios para a casa. Era ali que quase todos os problemas eram resolvidos. Havia até quem enviava, por eles, a geladeira, que, no final do veraneio, voltava para a cidade. Inacreditável, né? 

O Eduardo também fez referência à qualidade do pão que era vendido no Litoral. Ele comprava na padaria que citei no primeiro texto e confessa: “O pão era espetacular, quando eu chegava em casa havia comido um quarto do pão de meio quilo, que era no formato de um cacetinho enorme. Jamais esqueci aquele pão”.

O Pércio se surpreendeu com as memórias e agradeceu “a aula de história”. Um doce exagero, é claro. O Aldo lembrou de algumas semelhanças com as suas férias do passado, em Cidreira. O Liberato, de Santiago, disse que seu sogro, Vivente Beraldi, com a esposa Angélica, também veraneava em Capão, nos anos 1940, até por recomendação médica, já que a filha Melânia “tinha asma, e o mar era a receita na época”. O Jorge enviou-nos um cartão postal da antiga “nova rodoviária”, quando ainda era na praça da igreja. 

A Luciana lembrou das férias, na Rua Moacir, na década de 1980: “Ainda havia o cinema, o boliche e muitas casas”. Ela encerrou dizendo que “apesar do cenário bem diferente, Capão da Canoa, ainda é a praia que mais gosto.”  Demonstrou preocupação apenas com a situação do torreão da caixa d’água: “Vamos torcer para que permaneça por lá”.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

 

A caixa d’água de Atlântida, no Litoral Norte, que se tornou um mirante nos anos de 1960

A "nave espacial" da Corsan fica no atual Parque Zero Hora Norte

Ricardo Chaves
Ricardo Chaves / Arquivo Pessoal
Com o pitoresco formato que lembra uma espaçonave, o reservatório de água foi construído em 1952

Na década de 1960, quem se deslocava pela Avenida Paraguassu, sentido Norte/Sul, ao chegar no balneário de Atlântida, logo depois de cruzar a Avenida Central, olhando em direção à Serra, via uma estranha construção de concreto armado. Lá estava ela. Mais parecia uma nave espacial pousada no meio do areal. Na verdade, era apenas a caixa d’água que abastecia o recente loteamento, com água tratada e encanada. Mais que isso: uma referência e um ponto turístico. No alto do reservatório, que tem acesso por uma escada de alvenaria, coberto por uma cúpula de cimento, apoiada formosamente em alguns pontos que formam arcos, há um grande terraço. Um mirante, de onde se descortina um panorama de 360 graus da paisagem do entorno.

Ricardo Chaves / Arquivo Pessoal
Adalcir Novo, conhecido como Jacaré, preocupado em manter o patrimônio

Veranistas de Capão da Canoa, ali ao lado, eu e um grupo de inquietos adolescentes, apanhávamos nossas bicicletas e empreendíamos o passeio. Era gostoso ver tudo do alto e tirar fotografias. Com o passar do tempo e com o surgimento de muitos prédios, a construção foi sendo eclipsada até desaparecer da vista dos passantes distantes — e quase desapareceu da nossa memória. Até que, outro dia, lembrei dela. Julguei que tivesse sido demolida. Tentei um contato telefônico com a Secretaria Municipal de Turismo, com a da Cultura e finalmente com o gabinete do prefeito de Xangri-lá. Ninguém sabia me informar e o prefeito devia estar muito ocupado para atender jornalistas curiosos atrás de irrelevâncias. Não recebi retorno da ligação.

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Foi, então, que me falaram do Jacaré, o vereador e presidente da Câmara. Adalcir Novo, de 54 anos, é o nome dele; é funcionário da Corsan desde 1986 e, em 2006, como gerente da Unidade de Saneamento, promoveu a restauração da histórica caixa d’água. Para minha surpresa, informou: 

— Ela continua lá!

De fato, desde 1952, quando Antônio Casaccia liderou um grupo de empresários e fundou a Atlântida S.A. Balneários para lançar a nova praia, o planejamento incluiu uma estação de tratamento e o reservatório que abasteceria as residências e o comércio com água potável. O projeto urbanístico foi confiado ao grande Luíz Ubatuba de Farias, famoso engenheiro e urbanista. Segundo o empresário Solon Soares, histórico morador de Atlântida e, talvez, o principal responsável pela emancipação de Xangri-lá (município ao qual Atlântida pertence), o engenheiro hidráulico João Carlos Rolim Morganti foi o idealizador do sistema de abastecimento que contou, até 1984, com uma estação própria de tratamento — a qual foi instalada ao lado da RS 407 (Morro Alto/Capão) —, que captava água da lagoa e era de responsabilidade da Atlântida S.A.. Assim, o balneário de Atlântida foi o primeiro do Estado a ter uma rede hidráulica.

Ricardo Chaves / Arquivo Pessoal
A curiosa caixa d'água fica no Parque Zero Hora Norte, entre as Ruas Emboá e Ipê

Então, fica o convite. Vindo pela Avenida Paraguassu, entre à direita na Rua Guará, ande três quadras e dobre à esquerda na Rua Emboá. Logo em seguida você encontrará a "nave espacial" da Corsan, solidamente plantada no atual Parque Zero Hora Norte. Só é lamentável que o acesso ao mirante no topo do reservatório esteja interditado. Mesmo pertencendo a Corsan, a "Tacinha" — como é carinhosamente chamada pelos funcionários, devido a sua pequena capacidade de 135 metros cúbicos —, poderia se tornar um ponto turístico se a prefeitura a promovesse, ajardinando o parque em volta e cuidando desse raro monumento arquitetônico ainda na ativa. Para isso, antes de qualquer coisa, é preciso que se reconheça que ele existe. E que se dê importância. Afinal, ele está lá. 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Ameaça aos botos da barra: nova ponte Imbé-Tramandaí não pode expulsar a Geraldona

 

Litoral gaúcho tem um dos únicos lugares do mundo onde os golfinhos interagem com pescadores e mostram onde estão os peixes


Paulo Germano
Jefferson Botega / Agencia RBS
Boto se aproxima de pescadores na barra do Rio Tramandaí: inusitada parceria já foi tema de inúmeros trabalhos acadêmicos

A mais famosa é a Geraldona, uma senhora de quase 40 anos. Para um boto, é bem velhinha, mas sua desenvoltura ao apontar para os pescadores a localização dos peixes ainda impressiona.

– Garante o sustento de muita gente – atesta Nilton Izidoro, 52, que há três décadas arremessa tarrafas na Barra de Tramandaí, onde o rio de mesmo nome se encontra com o mar.

Geraldona já treinou Coquinho e Bagrinho, filhos que agora cresceram e também se especializaram em mostrar onde estão os cardumes. Ou seja, não é só entre os pescadores que a atividade passa de geração em geração.

A chamada pesca cooperativa funciona assim: com a nadadeira para fora da água, o boto vai cercando as tainhas com movimentos circulares, empurra os peixes em direção à margem e, como se não bastasse, ainda ergue a cabeça para apontar o local exato do cardume – é como se gritasse "agora sim, atirem essas tralhas!". Pronto: todas as tarrafas se estendem ali, bem no ponto que a Geraldona, ou o Bagrinho, ou a Esperança, ou a Catatau indicou.

– A gente sabe qual é o boto por causa da nadadeira. A da Catatau, por exemplo, é mais baixinha – explica Nilton.

Essa inusitada parceria, embora já tenha existido em outros dois ou três países, só ocorre hoje em Tramandaí e na barra de Laguna (SC) – a rede britânica BBC chegou a produzir um documentário sobre o fenômeno na cidade catarinense.

Tema de inúmeros trabalhos acadêmicos, atração para turistas e veranistas, a pesca cooperativa agora encara uma incógnita no litoral gaúcho: a nova ponte entre Imbé e Tramandaí, se for mesmo construída onde está prevista, pode espantar os botos para sempre. Ao menos é o que dizem pesquisadores, ambientalistas e pescadores da região – segundo eles, o barulho, a movimentação de veículos pesados e a vibração dos pilares embaixo da água acabariam com a atividade.

Mateus Bruxel / Agência RBS
Cada boto é reconhecido pelas características da nadadeira

Já sei que alguns discordam, também sei que a nova travessia é importante para o desenvolvimento da região, concordo que a ponte atual é insuficiente, e tudo isso precisa ser levado em conta, mas, vão me desculpar, patrimônio é patrimônio. Era só o que faltava a construção de uma ponte (ou de qualquer coisa que seja) não poder trocar de lugar para preservar uma das mais extraordinárias heranças culturais, ambientais e históricas do Litoral Norte.

Que fique claro: longe de mim ser contra investimentos – sou de Porto Alegre, conheço muito bem o buraco onde essa  mentalidade retrógrada nos enfiou. Mas uma cidade só prospera de verdade se souber valorizar justamente o que tem de único, o que tem de genuíno, autêntico, diferente, singular.

Há quem diga que não, que a nova ponte, naquele local, não prejudicaria os rodopios de Geraldona e sua trupe. Mas, por enquanto, é tudo achismo. Já passou da hora de a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) vir a público informar, afinal, quais são os riscos dessa obra. Porque o show precisa continuar.

Mateus Bruxel / Agência RBS
Nova ponte seria construída sobre a barra do rio