Na prateleira dos cigarros, não há mais maços. No balcão envidraçado da caixa registradora, poucas caixinhas de chicletes e doces repousam. Nos refrigeradores resta uma dúzia de bebidas. Pelas duas portas do estabelecimento, localizado na esquina das avenidas Paraguassú e Poti, entram e saem pessoas carregando sacolas de pães, como de praxe. Poucas sabem que será a última vez que sairão dali com cacetinhos frescos, bolos de cenoura, roscas de polvilho, tortas, frios fatiados e outros produtos. Despedem-se sem saber. Imaginam que no dia seguinte terão o mesmo pão francês para o café da manhã. A tarde ensolarada de 23 de outubro de 2014 passa como se fosse uma quinta-feira qualquer. Mas não é. Logo mais, às 20h15, as portas serão fechadas para não abrirem mais. A mais antiga e tradicional padaria do centro de Capão da Canoa, a São João, se despede dos caponenses, depois de 59 anos de atividade.
A primeira padaria São João foi aberta em 1955, na avenida Poti, muito próximo da esquina com a avenida Paraguassú, onde João Alves Diniz, o baiano, construiu o futuro prédio. Foto: Acervo pessoal da família Diniz.
A decisão de encerrar os trabalhos não é nova. Há seis anos, quando faleceu João Alves Diniz, o baiano, que fundou a padaria em 1955, os filhos cogitaram a ideia de fechar o local. No entanto, continuaram. Depois, há dois anos, quando um dos irmãos, Sérgio, também faleceu, pensou-se novamente em terminar os serviços. “Neste ano veio uma boa proposta para vender o prédio e acabamos aceitando, em acordo conjunto entre todos”, explica uma das proprietárias Maria Elisa Diniz, conhecida por todos como Mariza da São João.
A construção do prédio data por volta do final dos anos 1960, quando Capão da Canoa ainda fazia parte de Osório. O edifício de três andares, onde vive parte da família Diniz, foi vendido para uma construtora local do município. O ponto de esquina será alugado até a entrega do imóvel em junho de 2015. Outros dois estabelecimentos do prédio, um açougue na avenida Poti e um chaveiro na avenida Paraguassú devem permanecer abertos até o ano que vêm. Para o dono do açougue, Vilmar Manuel Marques, de 57 anos, o fechamento da São João afetará o seu negócio que tem mais de 30 anos. “Vou esperar para ver como será o movimento, porque o meu cliente é o mesmo da padaria”, comenta receoso o açogueiro. Já o chaveiro, há dez anos no ponto, ainda não tem o futuro endereço.
Na década de 1960, a padaria espichou seu prédio até a esquina avenida Paraguassú. Nesta época, os sorvetes artesanais do pai da família, João Alves Diniz, o baiano, já eram sucesso na região. Foto: Acervo pessoal da família Diniz.
“Cansaço”, definiu Mariza, de 63 anos, os quais 50 dedicou ao trabalho na confeitaria. Ela é a segunda mais velha dos seis filhos de João. “Eu tinha nove anos e o Sergio, meu irmão abaixo de mim, tinha sete, quando vendíamos na rua os sonhos [de doce de leite] que meu pai fazia no antigo Hotel Rio-grandense”, relata a confeiteira. Com a morte da mãe, Elvira, em 1964, aos 48 anos, devido complicações no coração, Mariza acabou assumindo a criação dos irmãos muito cedo, com apenas 12 anos de idade. “Não tenho hobby. Tudo que eu fiz na vida foi voltado para a padaria”, conta Mariza, que não se casou e nem teve filhos.
Uma pequena casa de alvenaria na avenida Poti, quase esquina com avenida Paraguassú, foi o primeiro endereço da São João. “Gêneros alimentícios em geral”, anunciava a pintura na parede. “Nessa época, o baiano (João Alves Diniz) usava forno de barro para assar os pães”, recorda Elisabete Diniz, de 60 anos, sendo 37 deles vividos dentro padaria. “Bete”, como é conhecida, é viúva de Sérgio e permaneceu trabalhando com a família depois da morte do marido. “Quando eu cheguei para trabalhar aqui, se vendia de tudo dentro da padaria, como um mini-mercado”, relata.
Em 1960, a casa foi estendida até a esquina da avenida Paraguassú. Nessa época, baiano começou a produzir sorvetes artesanais que eram um sucesso na praia. “O sorvete de abacate era o melhor da praça”, lembra o padeiro mais antigo da São João, Ildo Luis Nunes, no ofício desde 1973.
Entre os herdeiros de baiano, no total oito filhos, seis do primeiro casamento e dois do segundo, todos passaram pela padaria, ajudando de alguma forma. Dos quatro filhos de Bete, apenas Marilia, de 26 anos, seguiu a tradição e ficou até o fechamento. “Eu cresci brincando e ajudando minha mãe e meus tios aqui dentro da padaria”, explica a neta de baiano. Marilia conta que pela idade da padaria, muitos clientes cresceram frequentando o local e hoje trazem filhos para visitar a padaria. “Não adianta. A gente tenta esconder um pouco a emoção, mas acaba se apegando ao lugar e aos clientes”.
Na década de 1970, o prédio tornava-se um ponto de referencia em Capão da Canoa, que no verão vê sua população triplicar. Cena comum do verão era a fila do pão francês sair pela calçada. Foto: Acervo pessoal da família Diniz.
Nenhum aviso nas portas do estabelecimento informou que a confeitaria seria fechada. Há cerca de um mês, o boato começou a correr de boca-a-boca. Aberta de segunda a segunda, inclusive em feriados, os clientes mais fiéis e amigos da família já tinham conhecimento do fato. Mas a maioria foi pega de surpresa quando Marilia, que estava sentada no caixa, dava a notícia ao devolver o troco: “Então, hoje é o último dia”, anuncia a jovem. “Sério? Mas onde eu vou comprar meu pão agora?”, indaga o aposentado de 80 anos. “É uma pena! O atendimento era muito bom”, comenta o senhor, que há 12 anos é cliente da padaria. Outro cidadão, menos elegante, para em frente ao caixa: “Me vê um Marlboro azul!”, “Não temos mais cigarro”, responde Marilia. “Ah! Não tem? Vão quebrando devagarinho então”, brinca o homem, que sai porta fora. Marilia ri. Até porque, não há mais nada a dizer.
Embora o fechamento tenha desagradado muitos clientes, Mariza é enfática: “Chega uma hora que é preciso parar e descansar”. E, de fato, não há outra motivação. Durante toda a tarde do último dia de funcionamento, o movimento das vendas foi igual a qualquer dia de inverno. “Três fornadas pela manhã, mais cinco à tarde”, explica Mariza. Ao todo, são mais de três mil cacetinhos assados todos os dias no forno à lenha “Ultra-vulcão”. No verão, a produção triplica, pois a fila do pão chega a sair para a rua e se estende pela calçada.
Para Mariza, o sucesso da São João se dá pela tradição do produto. O pão francês, carro-chefe da padaria, é assado da mesma forma há anos. “Nunca vendemos pão congelado. É mais simples de fazer, mas não é a mesma coisa”, argumenta a confeiteira. E os clientes concordam. Daqui pra frente, o pão não será mais o mesmo.
*Matéria publicada originalmente na página 4 da edição de 30 de outubro de 2014 do jornal Momento (Osório-RS).